Da várzea para as chácaras

Autoria: Ivan Evangelista Jr.

Para quem já morou na roça, é mais fácil entender as origens deste esporte chamado Futebol de Várzea. O assunto é gostoso e, ao mesmo tempo, convidativo. Por isso mesmo, vamos fazer uma incursão pela história, resgatando alguns flashes de memória registrados na infância.

No dicionário, encontramos a definição de várzea: “planície fértil e cultivada, em um vale”. Pois então era aí mesmo, ou seja, nos descampados, em meio às pequenas plantações de arroz, algodão, ou mesmo nos terreirões de café, que as peladas ou “quebra-dedos” aconteciam.

Bastava juntar meia dúzia de amigos e uma bola de capotão que a pelada era certa. Podia ser uma pelada curta, depois da bóia ou do café da tarde, ou um jogo combinado de final de semana, em que os times se revezavam no campo improvisado, geralmente chão batido, duas traves feitas de varas de bambus bem grossas e o chão riscado com cal.

Lembro-me de alguns campos em que os encontros destas equipes aconteciam: o Matsubara, o Cascata, o Mineirão, o da Papelamar e o da Ferroviária, entre outros. A origem de tudo, acredito, foram as colônias de trabalhadores rurais, sempre fartas na região, onde principalmente a cultura do café e do algodão ocupavam grande número de pessoas na lida com a lavoura.

Diversão, naquele tempo, para os mais jovens e também para os de mais idade, era sinônimo de bola no chão. Os times se formavam nas fazendas, treinavam durante a semana na própria sede e, nos finais de semana, se encontravam nos campos maiores para um racha com a participação de várias equipes. Seu Generoso, um amigo de bom tempo, conta que, antes de chegar perto do “campão”, o caminhão parava e a turma descia. Hora de esconder os canivetes, documentos, os objetos pessoais e até as roupas trocadas pelo uniforme. O motivo eram os famosos carreirões de fim de jogo.

Se o time da casa estava perdendo, o juiz tinha que fazer de tudo para propiciar o empate ou a virada, caso contrário a encrenca estava feita. Mesmo com prorrogação e tudo, o time visitante algumas vezes levava a melhor, mas também levava os catiripapos da torcida. Ao ver que o segundo tempo ia se acabando, o motorista da fazenda visitante já ligava o caminhão e ficava no prumo da saída.

Apito final do juiz – sebo nas canelas. O tempo era curto para pular na carroçaria do caminhão, que já estava de saída. Quem ficava para trás perdia o serviço no dia seguinte em razão dos ferimentos.

Por isso, a parada estratégica antes do embate. Já pensou, na hora do sufoco, parar para pegar a roupa ou qualquer objeto que ficou para trás? Foi nos campos da várzea que nasceu a expressão: da medalhinha para baixo, vale tudo.

Os campeonatos aconteciam durante todo o domingo e vinha gente de tudo quanto é lado, com ou sem uniforme. Quando não tinham a “farda”, a saída era um time com camisa e outro sem camisa. Chuteira? Nem pensar. A ordem era pés descalços, pois chuteira era artigo de luxo e coisa de time grande. O uso obrigatório veio depois, bem depois.

Sabia que teve muito vereador que se elegeu doando uniformes e materiais esportivos? Estar próximo de um time de ponta era sinal de prestígio, voto certo na urna.

Depois, vieram as fábricas – Matarazzo, Zilllo, Cleyton, Senhorinha, Bavária – e o êxodo rural foi acontecendo naturalmente. Entre o salário da lavoura, o cabo da enxada e trabalhar no coberto, a opção foi a cidade, com os “benefícios” de um emprego mais certo.

Mas nem por isso os times de várzea deixaram de existir. Pelo contrário, se multiplicaram, ganharam uniformes e passaram disputar campeonatos mais organizados. Ganharam até uma liga. Tive um vizinho, Sr. Mitsui, que foi um dos grandes organizadores dos campeonatos.

Marcados o jogo, a data e o campo da disputa, o próximo passo era a torcida descobrir o nome do juiz. Ah, os pobres dos juízes! Antes mesmo dos times entrarem em campo, a intimidação já começava – “vai apanhar”, “olha lá o que vai fazer”, “só sai daqui de cadeira de rodas se o nosso time perder”… gritava a torcida, entre outros argumentos de forte apelo emocional.

No dia seguinte, a gente ligava o rádio e ouvia dizer que, no Mineirão, o juiz fulano de tal foi agredido covardemente pela torcida e precisou de ajuda da policia para poder sair de campo. Acha que é brincadeira? Então, pergunte ao Rubens Coca que ele vai contar histórias de arrepiar o pé do cabelo! Grêmio Ferroviário, Secadores TAM, Magoados Atlético Clube, Bancários, Matarazzo, Brasil Bandeirante, Juventude Católica, Paulista Futebol Clube, São Bento, entre tantos outros, fizeram a alegria dos torcedores e justificaram muito porre amarrado na boca do garrafão de cachaça e da lingüiça assada no prato de pinga.

Mas, o interessante é notar que o futebol de várzea ainda resiste ao tempo e ganhou novos adeptos. Além dos campos citados acima, as chácaras (O Circo, Vale Verde, Chavasca, Toca da Mina …) são exemplos vivos desta capacidade que o esporte mais popular do Brasil tem de tornar os homens todos iguais perante a bola. Mas o juiz, ah, o juiz, este continua sendo o grande vilão da história. Por isso mesmo é que todo juiz que se preze tem duas mães – uma que ele leva para o campo e outra que fica em casa.

Ivan Evangelista Jr
Membro da Comissão de Registros Históricos de Marília, inspirado pelas narrativas de Rosalina Tanuri.